O texto é da advogada Mirela Morena Freitas Bahiense, sócia do Chetto & Chetto Advogados Associados, LEXNET Salvador, onde atua no Núcleo de Direito Imobiliário.
A ECONOMIA COMPARTILHADA E OS DIREITOS REAIS
A multipropriedade, conhecida internacionalmente como fractional ownership, surgiu na Europa, na década de 60, num cenário de recessão instaurada pós-guerra. Os europeus passaram a compartilhar casas de lazer para desfrutar das suas férias com custo reduzido, vez que, dessa forma, desembolsavam muito menos do que adquirindo a propriedade inteira de um bem e arcando com a manutenção integral dele.
Aqui no Brasil, apesar de ainda não possuir regulamentação específica, partindo da premissa de que, o que não é defeso por lei, é permitido, a propriedade fracionada vem sendo utilizada nos negócios vinculados ao turismo (resorts etc) e aos artigos de luxo (aeronaves, lanchas etc). Na prática, os compradores se tornam multiproprietários em função do tempo de gozo e fruição do bem. Cada um deles possui uma fração de tempo de uso exclusivo sobre o bem móvel ou imóvel e todos dividem os custos dele advindos e as despesas com manutenção.
O Superior Tribunal de Justiça se pronunciou a respeito do tema e entendeu que a natureza jurídica da multipropriedade é de direito real, nos termos do REsp 1.546.165/SP abaixo destacado:
PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. RECURSO ESPECIAL. EMBARGOS DE TERCEIRO. MULTIPROPRIEDADE IMOBILIÁRIA (TIME-SHARING). NATUREZA JURÍDICA DE DIREITO REAL. UNIDADES FIXAS DE TEMPO. USO EXCLUSIVO E PERPÉTUO DURANTE CERTO PERÍODO ANUAL. PARTE IDEAL DO MULTIPROPRIETÁRIO.
PENHORA. INSUBSISTÊNCIA. RECURSO ESPECIAL CONHECIDO E PROVIDO.
- O sistema time-sharing ou multipropriedade imobiliária, conforme ensina Gustavo Tepedino, é uma espécie de condomínio relativo a locais de lazer no qual se divide o aproveitamento econômico de bem imóvel (casa, chalé, apartamento) entre os cotitulares em unidades fixas de tempo, assegurando-se a cada um o uso exclusivo e perpétuo durante certo período do ano.
- Extremamente acobertada por princípios que encerram os direitos reais, a multipropriedade imobiliária, nada obstante ter feição obrigacional aferida por muitos, detém forte liame com o instituto da propriedade, se não for sua própria expressão, como já vem proclamando a doutrina contemporânea, inclusive num contexto de não se reprimir a autonomia da vontade nem a liberdade contratual diante da preponderância da tipicidade dos direitos reais e do sistema de numerus clausus.
- No contexto do Código Civil de 2002, não há óbice a se dotar o instituto da multipropriedade imobiliária de caráter real, especialmente sob a ótica da taxatividade e imutabilidade dos direitos reais inscritos no art. 1.225.
- O vigente diploma, seguindo os ditames do estatuto civil anterior, não traz nenhuma vedação nem faz referência à inviabilidade de consagrar novos direitos reais. Além disso, com os atributos dos direitos reais se harmoniza o novel instituto, que, circunscrito a um vínculo jurídico de aproveitamento econômico e de imediata aderência ao imóvel, detém as faculdades de uso, gozo e disposição sobre fração ideal do bem, ainda que objeto de compartilhamento pelos multiproprietários de espaço e turnos fixos de tempo.
- A multipropriedade imobiliária, mesmo não efetivamente codificada, possui natureza jurídica de direito real, harmonizando-se, portanto, com os institutos constantes do rol previsto no art. 1.225 do Código Civil; e o multiproprietário, no caso de penhora do imóvel objeto de compartilhamento espaço-temporal (time-sharing), tem, nos embargos de terceiro, o instrumento judicial protetivo de sua fração ideal do bem objeto de constrição.
- É insubsistente a penhora sobre a integralidade do imóvel submetido ao regime de multipropriedade na hipótese em que a parte embargante é titular de fração ideal por conta de cessão de direitos em que figurou como cessionária.
- Recurso especial conhecido e provido.
(REsp 1546165/SP, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, Rel. p/ Acórdão Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, TERCEIRA TURMA, julgado em 26/04/2016, DJe 06/09/2016)
Recentemente, o projeto de lei do Senado, o PLS nº 54/2017, o qual dispõe sobre o regime jurídico da multipropriedade, foi aprovado com emendas pela CCJ – Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da casa legislativa.
Nele, a multipropriedade é disciplinada como aproveitamento econômico de coisa móvel ou imóvel em frações de tempo fixas e destinadas à utilização exclusiva dos titulares, cada qual a seu turno.
Vale destacar os artigos iniciais do referido projeto de lei:
Art. 1º A multipropriedade ou propriedade fracionada, fracionária ou fracionada por período de tempo, constitui-se em relação jurídica que traduz o aproveitamento econômico de uma coisa imóvel em unidades fixas de tempo, visando à utilização exclusiva de seus titulares, cada qual a seu turno, ao longo das frações temporais que se sucedem. Parágrafo único. O condomínio geral e voluntário ou o condomínio edilício pode ser instituído em regime de multipropriedade, destinada ou não a fins de lazer ou de turismo, em relação à parte ou à totalidade de suas unidades autônomas.
Art. 2º Na multipropriedade o direito real de propriedade com todos seus atributos de cada multiproprietário em regime indiviso sobre o imóvel, prédio isolado ou unidade autônoma em condomínio edilício, se concentra na possibilidade de gozo e fruição com exclusividade, e sem concorrência dos demais, do imóvel durante um determinado período ou fração de tempo durante o ano calendário e de forma cíclica e reiterada perpetuamente.
O tema já foi objeto de outros projetos de lei apresentados, tais como o PLS nº 469/2016 e o PLC n° 7553/2017, os quais, inclusive, ainda tramitam nas suas respectivas casas legislativas iniciadoras. Contudo, da análise dos textos de cada projeto, verifica-se que o PLS nº 54/2017 é o mais completo deles, possuindo a melhor formatação para atender os anseios do mercado e se adequar ao ordenamento jurídico pátrio.
O referido projeto de lei traz a multipropriedade como direito real perpétuo – tendo cada proprietário todos os direitos inerentes à propriedade, porém com limitação de uso por tempo –, afastando, desse modo, a insegurança inicialmente gerada a respeito da natureza jurídica do instituto, permitindo a sua regularização e o desenvolvimento desse modelo de negócio no País.
Em verdade, uma vez regulamentada no ordenamento jurídico pátrio, a multipropriedade fomentará a ocupação e a popularização de bens de alto custo de aquisição e manutenção, atendendo, assim, a sua função social, conforme preceitua a própria Constituição Federal. Trará benefícios como a geração de empregos e renda e impulsionará o direito ao lazer.
Todavia, a despeito de ser inicialmente atrelada ao turismo e lazer, a ultipropriedade poderá ter outras destinações, inclusive comercial.
Registre-se que os estados da Bahia e São Paulo se anteciparam e trouxeram junto aos seus respectivos códigos de normas de serviços extrajudiciais a multipropriedade como direito real. Com tais previsões normativas dos estados em vigência, com o atual entendimento do STJ e com o projeto de lei de regulamentação do instituto em vias de sancionamento, tanto o empreendedor quanto o comprador estão, de pronto, favorecidos, pois abre-se espaço para o crescimento dessa modalidade de negócio com segurança jurídica.
No estado da Bahia, após a revisão do Código de Normas e Procedimentos dos Serviços Notariais e de Registros, em vigor desde janeiro/2018, foi inserido o §5º no artigo 942, in verbis:
Art. 942. A matrícula será aberta nos seguintes casos:
(…)
- 5º. Na hipótese de multipropriedade (fractional ownership), serão abertas as matrículas de cada uma das unidades autônomas e nelas lançados os nomes dos seus respectivos titulares de domínio, com a discriminação da respectiva parte ideal em função do tempo.
A inovação é de extrema importância em virtude de permitir o registro do negócio jurídico na matrícula do imóvel, dando, consequentemente, a necessária publicidade do ato e legitimando eventual oponibilidade contra terceiros. Retornando ao texto do PLS nº 54/2017, importante também apontar que a legitimidade para constituir uma multipropriedade foi destinada às mesmas pessoas elencadas no artigo 31, alíneas “a”, “b” e “c”, e §1º da Lei nº 4.591/64, que dispõe sobre o condomínio em edificações e as incorporações imobiliárias. São elas:
Art. 31. A iniciativa e a responsabilidade das incorporações imobiliárias caberão ao incorporador, que somente poderá ser:
- a) o proprietário do terreno, o promitente comprador, o cessionário deste ou promitente cessionário com título que satisfaça os requisitos da alínea a do art. 32;
- b) o construtor e/ou corretor de imóveis.
- c) o ente da Federação imitido na posse a partir de decisão proferida em processo judicial de desapropriação em curso ou o cessionário deste, conforme comprovado mediante registro no registro de imóveis competente.
- 1º No caso da alínea b, o incorporador será investido, pelo proprietário de terreno, o promitente comprador e cessionário dêste ou o promitente cessionário, de mandato outorgado por instrumento público, onde se faça menção expressa desta Lei e se transcreva o disposto no § 4º, do art. 35, para concluir todos os negócios tendentes à alienação das frações ideais de terreno, mas se obrigará pessoalmente pelos atos que praticar na qualidade de incorporador.
Para os empreendedores, é vedada a constituição da multipropriedade para fornecimento apenas da estrutura, obrigando, pois, a existência de conteúdo no imóvel, a exemplo de mobília e equipamentos, suficientes para o gozo e fruição de qualquer multiproprietário. Mencione-se ainda que o projeto de lei apresenta três tipos de periodicidade correspondente a cada fração de tempo: fixa, flutuante ou mista.
Os períodos foram definidos no §5° do artigo 2°:
Art. 2°. (…)
(…)
- 5º O período de tempo correspondente a cada fração de tempo poderá ser:
I – fixo e determinado no mesmo período de cada ano calendário;
II – flutuante, caso em que a determinação do período se fará em forma periódica, segundo disponibilidade e mediante procedimentos objetivos que respeitem o princípio de oportunidades de todos os multiproprietários, devendo ser previamente divulgado; ou
III – misto, que é uma combinação dos sistemas fixo e flutuante.
Em razão da própria essência da multipropriedade, por ser uma propriedade fracionada por período de tempo, o projeto de lei dispôs acerca dos requisitos obrigatórios na elaboração da convenção condominial. O fato é que, por óbvio, por se tratar de propriedade fracionada, as regras gerais e de convivência e a escolha do administrador são de extrema importância.
Sobre a administração de uma multipropriedade, por ser este instituto até o momento pouco difundido, o mercado ainda é carente de administradores com tal expertise, sendo, portanto, uma área promissora para aqueles com interesse no assunto. Também há previsão expressa da ausência do direito de preferência dos multiproprietários quando da alienação de qualquer outra fração de tempo do imóvel.
Tal direito, entretanto, poderá ser instituído pela convenção condominial. Vale destacar que, enquanto não sancionado o projeto de lei, se faz necessária a renúncia expressa do direito de preferência ao adquirir uma fração de tempo de uma multipropriedade.
De igual modo, na matrícula mãe do empreendimento, deverão conter todas as frações de tempo e os seus respectivos proprietários. Com a aprovação do projeto de lei, cada fração de tempo será objeto de uma ficha auxiliar da matrícula, onde constarão todos os atos exclusivos daquela fração. O projeto de lei, então, alterará a Lei de Registro Público, a fim de acrescentar as fichas auxiliares para os imóveis em regime de multipropriedade.
O PLS n° 54/2017 ainda permite a participação do empreendimento de multipropriedade em sistema de administração de intercâmbio nos termos do §2° do artigo 23 da Lei n° 11.771/2008 (Política Nacional de Turismo). A RCI (Resort Condominiums International) é a principal empresa operadora e a pioneira no conceito de intercâmbio de férias.
Art. 23. Consideram-se meios de hospedagem os empreendimentos ou estabelecimentos, independentemente de sua forma de constituição, destinados a prestar serviços de alojamento temporário, ofertados em unidades de frequência individual e de uso exclusivo do hóspede, bem como outros serviços necessários aos usuários, denominados de serviços de hospedagem, mediante adoção de instrumento contratual, tácito ou expresso, e cobrança de diária.
(…)
- 2o Considera-se prestação de serviços de hospedagem em tempo compartilhado a administração de intercâmbio, entendida como organização e permuta de períodos de ocupação entre cessionários de unidades habitacionais de distintos meios de hospedagem.
Como o PLS nº 54/2017 foi devidamente aprovado pela CCJ e transcorreu in albis o prazo para interposição de recurso, será encaminhado para análise da Câmara dos Deputados. Ao regulamentar o regime jurídico da multipropriedade, alavancaremos o mercado imobiliário e traremos mais investimentos ao País. O ganho é para todos! Para o comprador da fração de unidade de tempo, é viabilizada a aquisição e manutenção de um bem com pouco investimento e com padrão superior ao que de fato poderia adquirir, dentro da sua realidade financeira, em caso de compra de uma unidade inteira. Para o empreendedor, há maior quantidade de adquirentes interessados e maior agilidade na venda. Aguardemos, pois, os últimos trâmites de aprovação do projeto de lei.