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Nas últimas semanas foi publicada a portaria que altera as regras para caracterização do chamado “trabalho escravo”. A questão gerou um debate polemico na imprensa. Para esclarecer mais esta questão, convidamos o advogado Sérgio Schwartsman, sócio coordenador da área trabalhista do escritório Lopes da Silva & Associados, LEXNET São Paulo. Confira no texto a seguir.
As polêmicas mudanças acerca da caracterização do trabalho escravo
Por Sérgio Schwartsman
Recentemente foi publicada pelo Ministério do Trabalho a Portaria nº 1.129 de 13 de outubro de 2017, alterando as regras para caracterização do chamado “trabalho escravo” e ainda as regras para publicação da chamada “Lista Suja” que divulga o nome das pessoas, físicas e jurídicas, que foram autuadas pela utilização desse chamado “trabalho escravo”.
Obviamente e, a nosso ver, com toda razão, a Portaria gerou enorme polêmica, na medida em que caminha na contramão do combate a essa prática hedionda, posto que dificulta a caracterização desse modalidade de utilização de mão de obra, estabelecendo que diversas situações que anteriormente caracterizavam o chamado “trabalho escravo”, a partir de agora, deixariam de caracterizá-lo e passam a caracterizar o “trabalho forçado”, o qual não autoriza a inclusão do empregador da “Lista Suja”.
A Portaria, na verdade, visava estabelecer regras para concessão do benefício do Seguro Desemprego “ao trabalhador que vier a ser identificado como submetido a regime de trabalho forçado ou reduzido a condição análoga à de escravo”, porém, acaba por estabelecer os parâmetros para caracterização do “trabalho forçado” e da “condição análoga à de escravo”, sendo que, especialmente neste último tema, restringe a possibilidade de caracterização a essa situação, em apenas 4 situações (as demais caracterizam o “trabalho forçado), quais sejam:
- a) a submissão do trabalhador a trabalho exigido sob ameaça de punição, com uso de coação, realizado de maneira involuntária;
- b) o cerceamento do uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto, caracterizando isolamento geográfico;
- c) a manutenção de segurança armada com o fim de reter o trabalhador no local de trabalho em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto;
- d) a retenção de documentação pessoal do trabalhador, com o fim de reter o trabalhador no local de trabalho;
Portanto, limita as hipóteses de caracterização do “trabalho escravo”, inclusive indo contra a previsão do art. 149 do Código Penal, que caracteriza o crime de “Redução à Condição Análoga à de Escravo”, sendo que algumas das hipóteses do Código Penal passam a caracteriza apenas o chamado “trabalho forçado”.
Esse dispositivo do Código Penal estabelece as penas para quem “reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”.
Para o Código Penal, portanto, para a caracterização do “trabalho escravo” basta a presença de um dos seguintes requisitos, (i) submissão a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, (ii) sujeição a condições degradantes de trabalho ou (iii) a restrição da liberdade de locomoção, especialmente por dívidas contraídas com o empregador.
Ou seja, para o Código Penal, as hipóteses da configuração do crime são maiores que aquelas ora fixadas pela Portaria em comento, posto que diversas das situações previstas pelo Código, passam, como já dito, a caracterizar apenas o “trabalho forçado”.
É de se salientar que Portaria Interministerial MTPS/MMIRDH nº 4, de 11 de maio de 2016, à qual a Portaria nº 1.129/17, se remete, permite a divulgação da “Lista Seja” apenas para aqueles empregadores autuados por “trabalho escravo”, não havendo lista para aqueles autuados por “trabalho forçado”.
Posto de outra forma, para a caracterização de crime praticado pelo empregador, as hipóteses de reconhecimento do trabalho escravo são maiores que aquelas que permitem a obtenção inclusão do empregador na chamada “Lista Suja”, criando a possibilidade do empregador ser condenado pelo crime de “trabalho escravo”, mas não sendo possível a inclusão de seu nome na “Lista Suja”.
Por exemplo, se houver sujeição do trabalhador a condições degradantes de trabalho, de acordo com o Código Penal, há o crime de “reduzir alguém a condição análoga à de escravo”, porém, como essa situação não se enquadra nas hipóteses da Portaria nº 1.129/17para a caracterização do “trabalho escravo” (na verdade, seria apenas “trabalho forçado”), não se poderá incluir o nome do empregador na “Lista Suja”, nos termos da Portaria Interministerial MTPS/MMIRDH nº 4/16. Nada mais incoerente.
E se isso não bastasse, a Portaria nº 1.129/17 ainda dificulta a fiscalização e autuação de empregadores que se utilizem de “trabalho escravo”, posto que exige que todas elas sejam acompanhadas de autoridade policial, que deverá lavrar Boletim de Ocorrência para que seja juntado ao auto de infração.
Com efeito, a Portaria estabelece quais os documentos que devem ser anexados ao Auto de Infração “para o recebimento do processo pelo órgão julgador”, sendo que sem a decisão final nesse processo, não se poderá incluir o nome do empregador da “lista Suja”. E a Portaria prevê que um desses documentos deve ser o “Boletim de Ocorrência lavrado pela autoridade policial que participou da fiscalização”.
Ora, se para instauração do processo, que ao final permitirá a inclusão na “Lista Suja”, é indispensável o “Boletim de Ocorrência lavrado pela autoridade policial que participou da fiscalização”, evidentemente que toda fiscalização deve ser acompanhada por uma autoridade policial para que possa lavrar o Boletim de Ocorrência.
Ocorre que é sabido que não há policiamento suficiente para acompanhar todas as diligências que devem ser efetuadas. Assim, se não houve autoridade presente para lavar o Boletim de Ocorrência o processo não poderá ser apreciado e, consequentemente, não se terá a caracterização do “trabalho escravo” e nem a inclusão do nome empregador na “Lista Suja”.
Portanto, já do ponto de vista jurídico, nos parece uma involução a alteração imposta pela Portaria nº 1.129/17, seja pela redução das hipóteses da caracterização do “trabalho escravo”, seja pela dificuldade em se instaurar processo administrativo que, ao final, permitirá a inclusão do nome do empregador da “Lista Suja’.
Mas se isso não bastasse, nos parece, ainda, que do ponto de vista social, há ainda mais retrocesso, pois não se pode amenizar as punições àqueles que se valem de “trabalho escravo”, devendo, ao contrário, cada vez mais, e com mais força, se combater essa modalidade inaceitável de exploração.
Conforme publicado pelo Jornal Valor Econômico, na matéria “Resgates de trabalhadores escravos caem nos últimos anos”, de autoria de Cristiane Bonfanti, “segundo dados do Ministério Público do Trabalho (MPT), o total de inspeções no país passou de 344 em 2011 para 184 em 2016. O número de trabalhadores resgatados, por sua vez, chegou a subir de 2.495, em 2011, para 2.603, em 2012, mas veio diminuindo gradativamente e chegou a 658 no ano passado. Este ano, até agora, foram apenas 30 inspeções e 73 resgates em todo o país”.
Ou seja, já está havendo redução das inspeções e ainda redução dos resgates de trabalhadores em situação análoga à de escravo, assim, se ainda se criar mais burocracia para as inspeções, como a necessidade de acompanhamento de autoridade policial, termos menos inspeções e menos resgastes e, portanto, abriremos espaço para mais exploração aos trabalhadores.
O que se precisa é aumentar o combate a esse tipo de exploração e, portanto, deve ser facilitada a fiscalização e não dificultar a mesma. Além disso, por uma questão de segurança jurídica, é preciso que as Normas que tratam de mesmo tema, tenham harmonia entre si, de tal sorte que não deve haver uma caracterização de “trabalho escravo” para o Código Penal e outro para a Legislação do Trabalho.
Portanto, somos de opinião que a Portaria nº 1.129 de 13 de outubro de 2017 deve ser revogada ou alterada, para que a caracterização do “trabalho escravo” seja a mesma do Direito Penal e ainda para permitir a fiscalização apenas pelos Auditores do Trabalho, sem necessidade de acompanhamento policial, até pela fé-pública de que são dotados os Auditores.