Por Cynthia Beatriz Pinheiro Lima, advogada no escritório Amaral de Andrade & Pinheiro Lima.
Em um Brasil cada vez mais polarizado e com crenças preconceituosas enraizadas na sociedade, fez-se necessária, para colaborar com a implementação das políticas nacionais de enfrentamento à violência de gênero1, a criação pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça), do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, por meio de um Grupo de Trabalho instituído pela Portaria 27, de 2 de fevereiro de 20212
Trata-se de um instrumento transformador, colocado à disposição do Poder Judiciário, para que todo o segmento da Justiça, incluindo magistrados, servidores, advogados e auxiliares da Justiça, busquem eliminar tratamentos e julgamentos eivados de preconceitos, estereótipos e de repetição da desigualdade estrutural, a fim de alcançar o “Objetivo do Desenvolvimento Sustentável – ODS 5 da Agenda 2030 da ONU”, à qual se submeteram CNJ e STF (Supremo Tribunal Federal).
O tema abordado no Protocolo se relaciona a uma política global de enfrentamento ao preconceito de gênero, de forma que a aplicação das diretrizes ali contidas deve ocorrer de forma ampla, com um profundo diálogo entre todos os entes públicos e privados, para superar qualquer preconceito infelizmente enraizado na cultura nacional.
Dentre as metas que o Brasil se submeteu no referido pacto global da ONU, destaca-se:
Eliminar todas as formas de violência de gênero nas esferas pública e privada, destacando a violência sexual, o tráfico de pessoas e os homicídios, nas suas intersecções com raça, etnia, idade, deficiência, orientação sexual, identidade de gênero, territorialidade, cultura, religião e nacionalidade, em especial para as mulheres do campo, da floresta, das águas e das periferias urbanas3.
Neste contexto, o Protocolo em comento aborda a eliminação de estereótipos de gênero, os quais, imbuídos na atividade jurisdicional, podem provocar inúmeras formas de violência e discriminação.
Quando se trata de processo judicial, o Protocolo chama a atenção dos magistrados, para que atentem sobre a existência dos estereótipos, identifique-os, reflitam sobre suas consequências, incorporando, assim, a ponderação realizada em suas decisões.
Tal atuação, entretanto, deve fazer parte da rotina de todos os envolvidos, inclusive servidores, advogados e auxiliares da justiça, para que não reproduzam argumentações baseadas nos estereótipos construídos em razão de hierarquias sociais transmitidas ao longo do tempo.
Em relação à guarda das filhas e dos filhos, por exemplo, o Protocolo menciona que:
a alegação de alienação parental tem sido estratégia bastante utilizada por parte de homens que cometeram agressões e abusos contra suas ex-companheiras e filhos(as), para enfraquecer denúncias de violências e buscar a reaproximação ou até a guarda unilateral da criança ou do adolescente.
Importante a análise conjunta das ações distribuídas, bem como o depoimento especial do(a) menor, de acordo com a disciplina estabelecida pela Lei n. 13.413/2017, cumprindo anotar que não somente nas ações penais é possível o relato da violência por meio da escuta protetiva; à primeira menção de violência, em qualquer de suas formas, pode a magistrada e o magistrado submeter a criança e o adolescente ao depoimento especial, meio de prova oral e pericial que poderá ser utilizado em todos os processos a eles relacionados, inclusive para o fim de evitar indevida revitimização.
Com relação à igualdade no tratamento entre homens e mulheres no processo, o Protocolo propõe uma visão mais profunda por parte do magistrado, a fim de que se indague, em cada caso concreto, sobre eventual desigualdade estrutural e se identificada, seja utilizado o princípio da igualdade substantiva, visando a resolução da controvérsia de forma a minimizar as hierarquias sociais, para se obter um resultado mais igualitário, mediante a desconstrução de padrões.
A violência financeira e patrimonial muitas vezes não é assumida no Judiciário, o que também vem exemplificado no Protocolo, conforme o seguinte trecho:
O alimentante que dispõe de recursos econômicos por vezes adota subterfúgios para não pagar a verba alimentar, retem e se apropria de valores destinados à subsistência dos alimentandos, prática violência psicológica, moral e patrimonial contra a mãe dos filhos, em situação de episódica vulnerabilidade, pelo desfazimento da união.
No direito de família, a atuação dos profissionais com base no Protocolo para Julgamento de Gênero é essencial para alcançar a Justiça com imparcialidade e equidade, inclusive para que a igualdade jurídica não se transforme, como vem ocorrendo, em mera assimilação entre homens e mulheres e com isso, aumente ainda mais as diferenças e o que é pior, deixe a mulher ainda mais desprotegida.
O argumento da igualdade constitucional entre homens e mulheres, por exemplo, tem sido utilizado no Judiciário para que a mulher, normalmente vulnerável financeiramente no fim de uma relação conjugal, não obtenha direito a pensão alimentícia, o que importa em agravamento de sua vulnerabilidade e verdadeira violência judicial.
Diante deste desafio e para que seja alcançada a imparcialidade e equidade, o protocolo propõe:
Analisar e julgar uma ação com perspectiva de gênero nas relações assimétricas de poder significa aplicar o princípio da igualdade, como resposta à obrigação constitucional e convencional de combater qualquer tipo de discriminação de gênero, garantindo o real acesso à justiça com o reconhecimento de desigualdades históricas, sociais, políticas, econômicas e culturais para a preservação do princípio da dignidade humana das mulheres e meninas.4
O Conselho Nacional de Justiça, inclusive, no dia 14 de março de 2023, aprovou a criação de uma resolução para estabelecer a aplicação do Protocolo em todos os ramos da Justiça em todo o país.
Conclui-se, portanto, que o Protocolo foi criado para atender a um movimento mundial visando a concretização da ainda distante equiparação real entre homens e mulheres em todos os contextos. Nestes termos, cabe à sociedade incorporar e colocar em prática as diretrizes recomendadas, para que a igualdade de gênero seja uma realidade.
- Portarias CNJ ns. 254 e 255, de 4 de setembro de 2018;
- https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/10/protocolo-18-10-2021-final.pdf
- https://www.ipea.gov.br/ods/ods5.html – acessado em 13/03/23
- Protocolo para Julgamento com perspectiva de gênero – pág. 95/96 – https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/10/protocolo-18-10-2021-final.pdf – acessado em 13/03/2023;