Por Marcos Bardagi, sociodiretor da Telos Transition
POR QUE FALAMOS EM FUTURO DO TRABALHO?
Em sua obra-prima magistral, Guerra e Paz, Tolstoi em um determinado momento nos traz a reflexão de que, quando olhamos acontecimentos históricos, temos a tendencia de buscar a causa de tudo, e normalmente costumamos imputar determinados eventos a Grandes Homens, nunca a vontades coletivas, nunca como decorrência de uma série de pequenas ocorrências. Para Tolstoi, a Rússia não foi invadida em 1812 porque assim queria Napoleão, mas sim porque essa era a consequência natural, uma espécie de fluxo de consciência coletiva.
No caso daquilo que nos acostumamos a chamar de Futuro do Trabalho, guardadas as devidas proporções, vejo parte desta lógica nos ser arremessada diariamente. O Futuro do Trabalho, seja o que for que isso quer dizer, tendencialmente é citado como derivado de fatores como a Inteligência Artificial, por causa de robôs inteligentes que substituem os trabalhos repetitivos, como emergindo a partir de nossa intensidade digital, do metaverso, da computação quântica, da biogenética, do aquecimento global, enfim, de tudo isso que está aí. O que fascina essa gente são imagens rocambolescas de cenários futuristas onde a sua holografia trabalha como se você não existisse por detrás.
Há quem diga que o Futuro do Trabalho já é o Presente, e quem viveu os últimos dois anos em modo híbrido, ou modo home-office, sabe do que estou falando.
Sou um destes. Aprendi a otimizar meu tempo de maneira fantástica, conciliando atividades do trabalho com as de casa, com afazeres domésticos e com a educação do meu filho, de um modo que não tinha sido possível em minhas paternidades anteriores. Meus ganhos qualitativos foram incomensuráveis. Mas respeito quem advoga que nada substitui uma reunião presencial, um olho no olho bem físico. E respeito muito também quem odeia ser perturbado no trabalho pelo tremelico incessante e ensurdecedor de uma velha e decrépita máquina de lavar rebolando adoidada na área de serviço na hora de centrifugar.
Mas, de volta ao cerne da questão, apoio-me na lógica de Tolstoi para tentar ver este novo Trabalho como uma evolução natural de nossa organização em sociedade.
Como é então este futuro/presente do trabalho? Para mim, os fatos inexoráveis e com os quais temos de lidar são:
- A convivência de 5 gerações pela primeira vez coabitando o mercado.
Com nossa longevidade se aproximando dos cem anos, aonde chegaremos saudáveis, e impulsionados por sentimentos tão distintos (uns “tendo de continuar trabalhando para sobreviver”, outros porque “quero devolver para a sociedade o que aprendi”), vamos muito em breve ter uma mesma organização profissionais entre 20 e 75 anos, cinco gerações (boomers, x, millenials, alfas, e os pós-pandemia (sem nome “oficial” ainda) ao mesmo tempo. Um modelo de trabalho de futuro precisa pensar nisso.
- Necessidades frenéticas de reaprendizagem constante
Já há quem diga que alguém hoje na casa dos 50 anos aproveita apenas 20% do que aprendeu em sua educação formal. E este ritmo de degradação da utilidade do conhecimento armazenado tende a acelerar. Daí a necessidade de aprendizagem do Novo ser constante. Mais do que a consequência de ser uma verdadeira ameaça aos que se acomodam, o impacto para o trabalho também é tamanho porque todos tem de reservar um tempo importante para manterem-se atualizados. E estas horas de aprendizagem não serão roubados de atividades de lazer ou da convivência familiar, poucos estarão dispostos a isto. Elas farão parte do Novo Trabalho.
- Intolerância para métodos tradicionais de carreira e remuneração
Aa pesquisas já apontam que o que importa hoje para os mais jovens são o sentimento de pertencimento, a certeza de que se contribui para algo maior, o chamado propósito. Some-se isso às horas de aprendizado permanente e temos um caldo que impõe uma ressignificação do que é trabalhar para a grande massa da população ativa: trabalhar passará a ser aprender sempre, ter flexibilidade e algo que contribui para nosso crescimento pessoal, nossa formação como Ser Humano. E não algo que eu faço e que permite minha independência financeira. Isto também é importante, mas é consequência. Não é à toa que estamos em plena era da “great resignation”, com uma massa de trabalhadores recusando-se a atuar no modo moedor de carne, e optando por regimes alternativos. Hoje são dez milhões (!) de postos de trabalho sem candidatos nos EUA. Veja o que disse Rosa Alegria, do Instituto Millenium, na última HSM Management (nº150): “contratações complexas e benefícios onerosos ficaram no passado. Não há mais equipes formais, mas núcleos de profissionais para projetos, contratados em um grupo global de freelancers. Os profissionais on demand interagem com seus contratantes em diversas experiencias imersivas, nas plataformas digitais facilitadas por inteligência artificial em realidades metaverso.”
- Um mundo de idosos, sem crescimento populacional e muito, mas muito desigual
Chegaremos aos 9,7 bilhões de habitantes e estagnaremos, talvez até tenhamos leves declínios populacionais a partir de 2065. Em 2100 já seriamos somente 8,8 bilhões (estudo da Lancet), com uma taxa de fertilidade de apenas 1,7 filhos por casal, o que não repõe a população economicamente ativa. Um mundo que ainda é projetado e planejado para crianças, jovens e adultos de meia-idade, terá de se converter rapidamente em um mundo pronto para uma maioria de idosos. E diverso, extremamente diverso. O mundo que espera os habitantes de 2100 pode ter um novo maior país de língua portuguesa (Angola, com 188 milhões de habitantes e o Brasil 181). A Nigéria teria 700 milhões de habitantes e seria o terceiro mais populoso do mundo. Quase 90% da população mundial estaria em países subdesenvolvidos. O Trabalho do Futuro tem de resolver este dilema.
- O crescimento exponencial de conhecimento humano, de dados e as novas ciências
Você certamente já viu aqueles gráficos mostrando a velocidade de duplicação de conteúdo disponível on-line, a quantidade de dados que surgem a cada minuto na internet etc. Vou poupá-lo das cifras, e convidá-lo direto à reflexão: Pense nisso adicionando ultra velocidade de comunicação (5g e 6g), e o advento da capacidade computacional explodir para superar a capacidade logica humana (a tal Singularidade). O que vivenciaremos é algo ainda difícil de tangibilizar.
- A imposição de limites para a Humanidade
A primeira vez que o termo desenvolvimento sustentável veio a público foi no relatório Brundtland, da ONU, em 1987. É uma jornada que já dura 43 anos. Aos trancos e barrancos, passando pela ECO 92 no Rio, pelo surgimento da Responsabilidade Social Corporativa na década de 1990 e pelo Acordo de Paris em 2015, chegamos ao “ESG”. E já vem a nova onda, a Economia regenerativa, pois não basta o olhar para a sustentabilidade, é preciso recuperar, resgatar certos danos para a vida na Terra siga em condições decentes. Limites ao crescimento econômico, antes visto como a tabua de salvação de todas as mazelas, estão cada vez fortes e frequentando o discurso mainstream. Para quem está precisando de novas referencias, recomendo ler “A economia donut”, de Kate Raworth, para um aperitivo bem saboroso. O Trabalho vai ter de se adaptar também a isso.
Haveria ainda muito outros tópicos a abordagem, porém de certa maneira vejo-os umbilicalmente conectados às seis forças acima. O aquecimento global e as mudanças que ele nos trará é mais um limitante, a evolução biogenética e de outras tecnologias serão meios adicionais de catapultar nossas possibilidades de termos modelos distintos na dinâmica do trabalho e assim por diante.
Enfim, sem a pretensão de esgotar as circunstâncias que nos movem na direção de um novo cenário para o Trabalho, espero que tenha conseguido lhes mostrar algumas facetas que convergem para esta necessidade de se repensar nossos modelos. E para empresas e pessoas, como sempre, quem tem a ciência como guia, a experiencia como alavanca e a capacidade de improvisação e criatividade sairá na sempre. Na minha terceira ou quarta carreira, este futuro do trabalho é algo que eu quero viver.
Construirmos o caminho para este futuro ainda está ao nosso alcance. Nós, que no caso brasileiro, somos a geração, ou as gerações, que impuseram décadas perdidas, com descalabros e ineficiências a rodo, que não foram capazes de pôr o país nos trilhos e que sempre tem se mostrado descomprometido com suas futuras gerações. Este estigma precisamos jogar no lixo, e deixar um legado que valha a pena ser vivido por nossos filhos e netos. Pense nisso como a herança imaterial, aquilo que ainda podemos entregar aos que virão.