Considerações sobre o Tema 1234 do STF
28/maio/2025
Por Flavio Guberman sócio do escritório Carrion, Gomes e Guberman Advogados
O Tema 1234 do STF, de repercussão geral e da relatoria do Ministro Gilmar Mendes, refere-se à discussão sobre a obrigação do Estado em fornecer medicamentos não previstos em listas oficiais, como as do Sistema Único de Saúde (SUS), quando prescritos por médicos para tratamentos específicos. A questão central envolve a interpretação dos direitos fundamentais à saúde e à vida, conforme previsto na Constituição Federal, e a limitação orçamentária do Estado. O tema foi definido no STF como “Legitimidade passiva da União e competência da Justiça Federal, nas demandas que versem sobre fornecimento de medicamentos registrados na Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA, mas não padronizados no Sistema Único de Saúde – SUS.”
A Repercussão Geral é um mecanismo processual utilizado pelo STF para selecionar casos que transcendem os interesses das partes envolvidas, possuindo relevância social, econômica, política ou jurídica. Quando um tema possui repercussão geral reconhecida, decisões sobre ele impactam todos os casos similares em todo o país, promovendo uniformidade na aplicação do direito.
O STF, ao julgar o Tema 1234, estabeleceu critérios para a concessão judicial de medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS. Mais ainda, o STF aprovou um acordo entre União, estados, Distrito Federal e municípios, estabelecendo regras para as ações judiciais em que se pede a entrega de medicamentos pelo SUS.
O acordo diz que as ações judiciais em que se pede medicamento que não está na lista do SUS, mas tem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), serão propostas na Justiça Federal, se o valor anual do medicamento for igual ou maior a 210 salários-mínimos. Nesse caso, a União pagará o custo total do medicamento. Se o valor for entre 7 e 210 salários-mínimos, a ação será julgada na Justiça Estadual, e a União reembolsará 65% das despesas dos estados e municípios, ou, 80% para medicamentos oncológicos, estabelecendo, demais disso, alguns critérios, a saber:
Critérios de Elegibilidade: O fornecimento de medicamentos não listados pelo SUS depende de critérios como a comprovação da necessidade do medicamento, a incapacidade financeira do paciente de arcar com os custos e a existência de evidências científicas que justifiquem o uso do medicamento.
Procedimentos Administrativos: Deve-se esgotar as vias administrativas antes de buscar a via judicial, ou seja, o paciente precisa tentar obter o medicamento por meio dos protocolos do SUS antes de entrar com uma ação judicial.
Responsabilidade do Estado: O Estado pode ser responsabilizado judicialmente para fornecer medicamentos, mas essa responsabilidade é mitigada pela necessidade de observância de protocolos e diretrizes clínicas.
Pode-se perceber que, na prática, o STF poderá vir a inviabilizar os pedidos judiciais por conta dos critérios que veio a adotar, ainda que ao arrepio do Ordenamento hoje vigente, subvertendo a interpretação legal e radicalmente mudando seu posicionamento sobre tais questões de fornecimento de medicamento que, até então, parecia pacificado. Para empresários do setor de saúde, essa decisão implica a necessidade de adaptação aos protocolos e na possibilidade de demandas judiciais para fornecimento de medicamentos, o que pode afetar contratos e parcerias com o setor público. Para pacientes, o Tema 1234 significa que obter medicamentos não listados pelo SUS através de ações judiciais tornou-se mais complexo, exigindo comprovação científica e demonstração de incapacidade financeira, além do esgotamento das “vias administrativas”. Para médicos, por fim, a decisão impacta na prescrição de tratamentos, obrigando-os a justificar detalhadamente a necessidade de medicamentos fora das listas oficiais e a interagir mais diretamente com procedimentos administrativos e judiciais.
As decisões judiciais pendentes poderão ser reavaliadas à luz dos critérios estabelecidos pelo Tema 1234. Isso poderá resultar na revisão de sentenças na via recursal com a revisão da jurisprudência dominante ou na adequação de processos em andamento. As novas ações deverão seguir os critérios “mais rigorosos” estabelecidos pelo STF, incluindo a necessidade de esgotar as instâncias administrativas e apresentar provas robustas da eficácia e necessidade do medicamento solicitado.
De forma paradoxal, a decisão do STF está fundamentada nos princípios constitucionais do direito à saúde (art. 196 da Constituição Federal), da dignidade da pessoa humana (art. 1o, III), e na cláusula da reserva do possível, que limita a efetivação de direitos sociais pela capacidade financeira do Estado. Além disso, a Lei no 8.080/1990, que regulamenta o SUS, é um ponto central na argumentação. Ocorre que a justificativa legal são os artigos que justamente o Tema em questão está violando com a interpretação teratológica que adotou
A decisão do STF embora alegue buscar equilibrar o direito à saúde com as limitações orçamentárias do Estado, pode ser vista como uma restrição ao direito de ação e petição. Em outras palavras, não se pode deixar de considerar que o STF fez pouco do Princípio da Inafastabilidade da Jurisdição, violando, por conseguinte, o inciso XXXV do artigo 5º da CRFB. A exigência de esgotamento das vias administrativas submete aos desvãos da máquina burocrática emperrada e poderá fazer o cidadão perder tempo inestimavelmente precioso, custando até a vida do paciente, já que a notória morosidade, coroada pela conhecida ineficácia da máquina pública são marcas indeléveis que fazem há séculos a população brasileira sofrer. Justamente o pedido judicial vem porque não houve o dispensamento do medicamento por meio das redes oficiais, por inexistirem na rede pública ou casos similares. Assim, a recusa já houve, ainda que tácita. Exigir um protocolo e uma recusa formal (ou ainda a formação de um processo administrativo), além de cruel, pode ter um efeito multiplicador de mandados de segurança para exigir-se o exame administrativo dos pedidos, por exemplo, novamente comprometendo a eficácia da medida judicial posterior.
A necessidade de provas científicas rigorosas pode criar barreiras intransponíveis para muitos pacientes, especialmente aqueles em condições financeiras desfavoráveis. Se há a indicação clínica do médico, esta de maneira fundamentada, deveria, à luz da lei, bastar. Ademais, o que seriam as provas cientificas robustas e rigorosas? Quem estabelecerá tais critérios científicos? A vacina Sabin, que salvou tantos brasileiros da poliomielite, nunca teria sido adotada no país se fosse aplicada essa teoria, dada a controvérsia de que foi objeto. Isso, mais recentemente, sem mencionarmos a polêmica sobre as vacinas contra a Covid-19 (mesmo que apenas em relação a determinadas marcas delas). Assim, reitera-se a indagação: quem decidirá? Se houver submissão a critérios políticos para daí derivar-se o que seriam parâmetros científicos, submergir-se-á em uma espiral tautológica infindável. Observa-se, portanto, uma politização das decisões judiciais, onde considerações de ordem financeira e administrativa parecem prevalecer sobre o direito fundamental à saúde.
A interpretação dada pelo STF, ao restringir o direito de ação e petição, contraria a essência dos direitos fundamentais previstos na Constituição. A saúde é um direito de todos e dever do Estado (artigo 196 da CRFB), e a imposição de critérios tão restritivos pode resultar na negação de tratamentos essenciais, especialmente para doenças raras ou condições que ainda não possuem protocolos bem estabelecidos no SUS.
O Tema 1234 do STF, embora aparentemente estabeleça critérios para a concessão judicial de medicamentos não listados no SUS, gera preocupações significativas quanto ao seu impacto no direito à saúde e à justiça. A necessidade de equilibrar recursos financeiros limitados não deve resultar na negação de direitos fundamentais, e é crucial que haja um equilíbrio justo entre as necessidades dos cidadãos e as capacidades do Estado. A politização das decisões judiciais e a imposição de critérios pouco claros merecem uma reflexão crítica e uma possível revisão para assegurar que o direito à saúde não seja prejudicado e venha a custar vidas.