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Comentários desativados em Convenção da Haia – aspectos civis do sequestro internacional de crianças
Por Reinaldo Amaral de Andrade, advogado e sócio no escritório Amaral de Andrade & Pinheiro Lima
A Convenção de Haia sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças foi assinada em 25 de outubro de 1980 em Haia, na Holanda, e o Brasil aderiu a esta Convenção através do Decreto nº 3413, de 14 de abril de 2000.A Convenção prestigia a cooperação entre os países, para que as crianças que tenham sido transferidas do país de sua residência habitual sejam restituídas, a fim de preservar, primordialmente e quando possível, a convivência harmônica com ambos os genitores.
Os procedimentos perante a Convenção de Haia se iniciam por meio de um pedido administrativo de cooperação, formulado pela Autoridade Central do país de onde a criança foi retirada, para o país onde a criança tenha sido levada ou onde tenha sido retida indevidamente. No Brasil, esses pedidos vindos do exterior são encaminhados para a ACAF – Autoridade Central Federal.E, conforme consta do site do Ministério da Justiça e Segurança Pública, assim é definida a competência e atuação da ACAF: “A Autoridade Central Administrativa Federal (ACAF) é o órgão, no Brasil, incumbido da adoção de providências para o adequado cumprimento das obrigações impostas pela Convenção de Haia de 1980 sobre os Aspectos Civis da Subtração Internacional de Crianças, pela Convenção Interamericana de 1989 sobre a Restituição Internacional de Menores e pela Convenção de Haia de 1993 Relativa à Proteção das Crianças e à Cooperação em Matéria de Adoção Internacional.” (verbis – vide link: Autoridade Central Federal — Ministério da Justiça e Segurança Pública (www.gov.br))E continua a explanação no site do Ministério da Justiça e Segurança Pública::
“Autoridade Central é o órgão interno responsável pela condução da cooperação jurídica de um Estado, e sua constituição decorre da assinatura, adesão ou ratificação de um tratado internacional que determine seu estabelecimento. A Autoridade Central detém a atribuição de coordenar a execução da cooperação jurídica, podendo, quando necessário, propor e fomentar melhorias no sistema de cooperação e de efetivação de um tratado internacional.
A principal atividade de uma Autoridade Central é prestar cooperação internacional de maneira célere e efetiva como decorrência da diminuição de etapas no processamento de demandas judiciais tramitadas entre países distintos, podendo-se, a depender do conteúdo do tratado que lhe incumbe implementar, inclusive dispensando o uso de outros mecanismos de cooperação jurídica internacional, como a homologação de sentenças estrangeiras ou o uso da carta rogatória. Nesse sentido, cabe à Autoridade Central evitar falhas na comunicação internacional e no seguimento de pedidos, permitindo que as etapas processuais ocorram em concordância com os pressupostos processuais gerais e específicos aplicáveis ao caso, bem como evitar a adoção de mecanismos de cooperação inadequados à situação específica. Portanto, compete à Autoridade Central receber e transmitir os pedidos de cooperação jurídica internacional envolvendo seu país, após análise de seus requisitos de admissibilidade.
O trabalho desenvolvido pela Autoridade Central Administrativa Federal (ACAF), Autoridade Central para Adoção e Subtração Internacional de Crianças e Adolescentes, objetiva célere, fiel e adequada implementação das convenções internacionais às quais lhe incumbe implementar, frente a situações de subtração internacional, visitação transnacional ou em face de situações de abandono e de destituição do poder familiar que possam resultar na colocação da criança ou adolescente em adoção internacional.
Do ponto de vista da natureza do trabalho desenvolvido, trata-se do trâmite de pedidos de cooperação internacional ativos ou passivos, quando relativos à subtração internacional de crianças ou à implementação do direito de visitação transnacional, cujo processamento pode vir a constituir uma etapa prévia ao procedimento judicial, ou trabalho relativo à adoção internacional.” (verbis)
No presente artigo vamos debater os procedimentos administrativos e processos judiciais envolvendo mães brasileiras que deixam os países onde viviam e que vêm para o Brasil com seus filhos, geralmente nascidos no exterior, a fim de se refugiarem aqui, pelos mais diversos motivos.
Uma vez que deixaram o país onde estavam vivendo e trouxeram para o Brasil o(s) filho(s) consigo, afastando-o(s) do seu local de residência habitual e do outro genitor, chamado de “abandonado”, haverá o início do procedimento administrativo a pedido da Autoridade Estrangeira para a ACAF – Autoridade Central Administrativa Federal, para restituição da(s) criança(s) para o país de onde foram trazidas.
Já nessa fase do procedimento administrativo, deparamo-nos com algumas dificuldades, pois as mães devem ser notificadas pessoalmente e de forma inequívoca sobre a existência deste procedimento administrativo, e isso nem sempre acontece. De fato, não se sabe por qual razão; muitas vezes os endereços onde essas mães se encontram no Brasil, apesar de serem conhecidos dos genitores ditos “abandonados”, acabam não sendo transmitidos corretamente e as mães passam a ser procuradas como se estivessem fugindo ou se escondendo. Outras vezes, a própria ACAF certifica nos autos que teria intimado a mãe, mas não junta a prova da notificação, ensejando a ideia, com frequência, de que a genitora foi realmente intimada da existência do processo, mas não apresentou defesa no prazo concedido. Há vezes em que a notificação certificada pela ACAF não chegou efetivamente ao conhecimento da mãe. Contudo, havendo a intimação inequívoca da mãe, esta envia para a ACAF sua defesa, podendo ser redigida e endereçada por ela própria ou por meio de advogados legalmente constituídos.
Um outro problema com que nos deparamos, quando constituídos para a defesa de uma mãe num procedimento administrativo na ACAF, é que o acesso das partes e de seus respectivos advogados ao processo vinha sendo limitado ou mesmo negado, a ponto de, em determinada ocasião, ter sido indeferido o pedido de vista dos autos, o que acabou sendo contornado após a apresentação de reclamação acolhida pela então Diretora da ACAF. Esta deferiu, então, o acesso aos autos e às peças que o instruem por determinado prazo. Tal conduta da ACAF, evidentemente, acarreta prejuízo à ampla defesa que, para seu exercício, depende do conhecimento, pela própria parte ou seus advogados, da íntegra do processo com suas alegações e documentos apresentados pela Autoridade Central do país reclamante, para conhecer o alegado e a procedência ou não das acusações.
Superados esses problemas e, uma vez intimada regularmente, a mãe apresenta sua defesa no procedimento administrativo em curso na ACAF, muitas vezes relatando fatos graves que ocorriam no exterior, por exemplo, violência doméstica (física, psicológica ou financeira) da qual era vítima juntamente com a criança, sem conseguir amparo de nenhum órgão ou autoridade no país onde vivia, principalmente por não ser natural ou naturalizada naquele determinado Estado. Outros relatos comuns se referem a filho(s) portador(es) de alguma deficiência e que não contavam com assistência integral do genitor ou mesmo do governo do país onde viviam, impondo às mães uma situação de muito sofrimento, pois tinham de cuidar sozinhas dessas crianças com deficiências, sem que tivessem, no local onde residiam, nenhuma rede de apoio ou tratamentos necessários para seu(s) filho(s), coisas que muitas vezes encontram mais facilmente no Brasil.
Como a Convenção da Haia sobre os Aspectos Civil do Sequestro Internacional de Crianças prevê algumas exceções que podem ser invocadas para impedir o retorno da(s) criança(s) em determinadas circunstâncias, a própria ACAF deveria ser suficientemente competente para avaliar se num caso concreto essas exceções estão ou não presentes, até por conta do que dispõe o artigo 27 da Convenção. No entanto, independentemente dessa análise e do teor da defesa, a ACAF, após a defesa da genitora, envia uma Nota Técnica para a AGU – Advocacia Geral da União, para que esta promova ou não a Ação de Busca e Apreensão e Restituição da criança.
Da mesma forma, a AGU – Advocacia Geral da União deveria ter uma análise prévia, se o caso seria ou não de propositura da ação ou se estariam presentes uma das exceções previstas na Convenção de Haia, que impediriam o retorno da criança. No entanto, muitas vezes sem fazer essa análise e, no afã de ver cumprida a convenção, na parte que determina a restituição da criança, a AGU promove a ação de busca e apreensão e restituição, impondo às mães – mesmo se presentes as exceções da própria Convenção – o ônus de terem que se defender, comprovando o preenchimento das exceções, que são, basicamente:
1. Consentimento ou aprovação da criança: Se a criança em questão tiver idade e maturidade suficientes para expressar sua opinião e se opuser ao retorno, o país de acolhimento pode recusar a devolução. Essa exceção é aplicada com base no respeito aos direitos da criança de ser ouvida em questões que a afetam.
2. Risco de exposição a perigo grave:Se houver evidências de que o retorno da criança a seu país de residência habitual irá expô-la a um perigo físico ou psicológico grave, as autoridades do país de acolhimento podem recusar a restituição. Essa exceção é interpretada de forma restritiva e exige evidências substanciais para seu acolhimento.
3. No caso de violência doméstica ou abuso infantil: Casos em que é crível que a criança era submetida a violência doméstica ou abuso infantil no país de residência habitual podem resultar na recusa, pelo país de acolhimento, da restituição para o país reclamante.
4. Tempo decorrido desde a transferência ou retenção da criança: Em alguns casos, se a ação de retorno for movida após um período significativo, e a criança já estiver habituada e adaptada ao novo meio, os tribunais podem considerar que o retorno não atenderia o melhor interesse da criança.
5. Opção do requerente por outro remédio jurídico: Se a pessoa que tem o direito de cuidar da criança não exercer esse direito imediatamente após a transferência ou retenção considerada ilícitas, essa demora pode ser considerada como uma renúncia tácita à aplicação da Convenção; ou, ainda,
6. Quando não for compatível com os princípios fundamentais do Estado requerido (no caso, o Brasil) com relação à proteção dos direitos humanos e das liberdades fundamentais, incluindo aqui, a nosso ver, a questão da violência doméstica, quando o país reclamante não tem leis ou meios de proteção para as mulheres estrangeiras e seus filhos.
É importante destacar que as exceções à Convenção de Haia são interpretadas de maneira restritiva, e os tribunais normalmente buscam garantir que o retorno da criança seja decidido com base no melhor interesse dela. A aplicação dessas exceções varia de acordo com as leis e regulamentações de cada país signatário da Convenção, sendo que, no Brasil, a maioria dos Juízes tendem a determinar inclusive a realização de perícia psicossocial, para verificação do primordial interesse da criança em cada caso.
A ação judicial de busca e apreensão e restituição da criança é ajuizada pela AGU – Advocacia Geral da União, perante a Justiça Federal, onde a mãe será citada para se defender, havendo sempre um pedido de antecipação de tutela para, no mínimo, serem retidos os passaportes da genitora e da(s) criança(s) e determinação de comunicação à Polícia de Imigração, aeroportos e portos da proibição de saída dessa mãe com seu(s) filho(s). Na maioria das vezes essas medidas são deferidas pelos Juízes de enlace (ou ligação), que presidem esses processos.
Os juízes de enlace (ou ligação) integram a Rede Internacional de Juízes da Haia e são nomeados pelas nações signatárias da Convenção da Haia de 1980 sobre Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças, com a finalidade de facilitar a tramitação, entre os países, dos atos judiciais relativos aos tratados.
Contudo, a ausência de uma padronização nos procedimentos judiciais relacionados às ações de busca e apreensão e restituição de crianças resulta em uma diversidade de abordagens adotadas por diferentes juízes, variando de acordo com o Estado da Federação em que os processos estão em andamento. Em muitas ocasiões, essa disparidade é justificada pelo argumento de que os casos devem ser decididos em tempo hábil, conforme estipulado no artigo 11 da Convenção, que determina a necessidade de uma decisão sobre o retorno ou não da criança em um prazo de seis semanas.
Essa pressão temporal muitas vezes impõe limitações à defesa das mães, inclusive impedindo a apresentação de evidências periciais, cruciais nesse tipo de ação, para avaliar a solução mais adequada ao superior interesse da criança. Tal cenário pode transformar o processo em uma forma de violência processual, afetando não apenas as mães, mas comprometendo o próprio propósito da ação.
De fato, no decorrer dos anos assistimos vários atos, em processos, de flagrante violência institucional e processual, onde as mães muitas vezes são tratadas como se criminosas fossem, chegando ao cúmulo de uma delas ter sido encontrada com os filhos numa cidade onde estava passando o feriado de carnaval e ser impedida de retornar para o município onde vinha morando com os filhos e, ainda, terem colocado nela uma tornozeleira para que não se ausentasse do local onde estava. Num outro processo, uma das mães teve sua prisão decretada, por não entregar os filhos para o genitor, para “visitas”, no mesmo momento em que foi proferida sentença de procedência da ação de busca e apreensão e restituição da criança. A prisão foi relaxada pelo TRF, em Habeas Corpus.
Por todas essas razões, ou seja, pela necessidade de se investigar as razões que fizeram essas mães se afastarem com seus filhos dos países onde vivam; de ser analisada de forma profunda qual o melhor interesse das crianças envolvidas, inclusive através de cuidadosa perícia; de se verificar se havia ou não violência doméstica ou abuso nos países onde viviam; e, de se verificar a existência de alguma das exceções previstas na própria Convenção da Haia de 1980, defendemos ser imperativa a criação de um procedimento especial para as ações de Busca e Apreensão e Restituição de Crianças, com base na Convenção da Haia sobre Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças, uniformizando os procedimentos judiciais, assim resumindo o processo:
- Inicial da ação promovida pela AGU e/ou pelo(a) genitor(a) (que passa a ser assistente da União nesses casos), onde já deverão ser apontadas as provas a serem produzidas;
- Inclusão da criança como parte do polo passivo da ação, por ser um sujeito de direito e não um objeto de disputa, devendo ser defendida pela DPU (Defensoria Pública da União), dando à criança, assim proteção do Estado, já que o(a) genitor(a) abandonado(a) terá a representação da AGU (Advocacia Geral da União);
2.) Citação da mãe e da criança, na pessoa da mãe, de maneira pessoal e inequívoca;
3.) Recebimento da defesa a ser apresentada pela mãe e pela DPU em nome da criança, no prazo legal de no mínimo 15 (quinze) dias úteis, dada a complexidade da matéria e necessidade de aglutinar provas. Nestas defesas já deverão ser pleiteadas as provas a serem produzidas;
4.) Decisão determinando tentativa de conciliação ou de mediação, podendo ser utilizado para tanto inclusive o Núcleo de Práticas Restaurativas hoje existente;
5.) Após a tentativa de conciliação e, restando infrutífera, o juiz profere despacho saneador, já designando audiência de instrução e julgamento, apreciando e deferindo as provas a serem produzidas e que foram pleiteadas pelas partes e, principalmente, determinando a realização de perícia psicossocial envolvendo os genitores e a(s) criança(s) objeto do pedido de busca e apreensão e restituição, determinando que o laudo seja entregue pelo menos 5 (cinco) dias antes da audiência.
6.) Após a realização da audiência de instrução e julgamento, as partes então poderão manifestar-se sobre as provas produzidas, inclusive sobre o laudo, possibilitando, assim, a prolação de uma sentença.
7.) Finalmente, o juiz profere sua sentença, da qual caberá recurso em ambos os efeitos, já que a apreciação do melhor interesse da criança dependerá de avaliação segura, pela segunda instância.
Como pelos artigos 25 e 26 da Convenção da Haia o genitor dito “abandonado” não paga custas ou despesas judiciais e, até por questão de isonomia no tratamento das partes, as mães ou pais réus nessas ações, também devem ser isentados (as) desses pagamentos, mediante previsão expressa na lei criando um rito especial para os processos.
Enfim, a experiência mostra a necessidade de uma melhor adequação desses processos, para que não seja preterido nenhum direito fundamental das partes e, principalmente, das crianças envolvidas.