LEXNET
Artigos
Comentários desativados em A CONSTITUIÇÃO FEDERAL EM 30 ANOS: A CARTA SOCIAL
Por Flavio Guberman, Advogado e Consultor no Escritorio de Assessoria Jurídica José Oswaldo Corrêa, LEXNET Rio de Janeiro.
A CONSTITUIÇÃO FEDERAL EM 30 ANOS: A CARTA SOCIAL
Um dos pontos sobre os quais não cabe qualquer controvérsia em relação à Constituição da República promulgada em 05 de Outubro de 1988 é que ela trouxe em seu seio uma importantíssima ótica social. Com efeito, a Constituição, assim, alçou à condição de cláusulas pétreas uma série de garantias e liberdades individuais, y compris o direito ao trabalho e, desta forma, seguindo seu espírito dirigente, dogmático, analítico e programático, trouxe não só a descrição pormenorizada de todos os direitos e garantias, como apontamos no primeiro texto, mas, também, sem qualquer exagero, a maneira de como estes deveriam ser encarados, interpretados e, até mesmo, aplicados. Basta que se faça leitura, mesmo que perfunctória, de seu preâmbulo.
O Brasil, assim, é definido como um Estado Democrático “destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos”. Tais conceitos, então, foram dogmatizados – insistimos muito nesta característica – nos artigos 3º, 5º e 7º Ora, o dogmatismo é, por definição clássica, a tendência de se afirmar ou crer algo como verdadeiro e indiscutível. Por isso que dogmatismo é a base das crenças religiosas. E também não é à toa que essa característica quase religiosa impregne nossa Carta Maior, de vez que há uma religiosidade intrínseca no modo de pensar e agir politicamente no Brasil. Por isso, por exemplo, como apontamos já, se tinha a ideia de que a Constituição seria a panaceia que poria fim às mazelas sociais.
Ulysses Guimarães gostava – e usou essa frase diversas vezes no correr da Assembléia Constituinte – de citar a frase que encerra as matinas de Cinzas nos ofícios católicos: “ in interiore homine habitat veritas” à guisa de explicação para aquela enorme quantidade de direitos e garantias individuais insculpidas nos artigos da Constituição da República. E, por força desse dogmatismo quase religioso, até hoje se crêem inegociáveis e intangíveis os princípios que foram sacramentados no corpo da Constituição. Ainda que se queira disfarçar essa característica como um dogmatismo crítico, não deixa de ser um veio quase messiânico de imutabilidade que, trinta anos depois, parece exagerado, mas que, à luz dos espíritos recém-egressos dos anos de exceção, se compreende perfeitamente: a ilusão de que a Constituição protegeria a frágil democracia brasileira de quaisquer resvalos autoritários ou retrocessos sociais. Tanto que o próprio Ulysses fazia questão de frisar que sua maior – quiçá a única – preocupação era “assegurar aos brasileiros direitos sociais essenciais ao exercício da cidadania e estabelecer mecanismos para garantir o cumprimento de tais direitos.”
Assim, foram levadas à letra constitucional assuntos que, na realidade, seriam afeitos às leis ordinárias, como jornada de trabalho, licença-maternidade etc., tudo porque se acreditava que a natureza rígida da Constituição tornaria mais difícil modificarem-se os direitos “conquistados”, mas, ao mesmo tempo, impôs revisão de conceitos, como saúde e educação passando a direitos sociais, não mais como mero serviço público. Adotou-se, então, no texto constitucional brasileiro, o mesmo conceito já existente em Constituições como a francesa e a alemã, mas que ainda não está presente em diversas legislações da Europa ou da América. Inquestionavelmente um avanço, mas ligeiramente feérica. A constituição prevê “garantias” aos brasileiros para uma vida digna, com acesso à justiça, saúde, educação, lazer, alimentação, previdência social, trabalho, habitação, proteção à vida, aos idosos e à infância… A questão nodal, então, não é o que ela prevê, mas o que (não) se concretizou daquela longuíssima lista de boas intenções. Compreenda-se o que se está aqui expondo: absolutamente se está dizendo algo contra a Constituição ou os direitos e garantias nela presentes. Ao contrário, atendia-se à necessidade daquela época e às de hoje, inquestionavelmente. No entanto, até hoje, passados trinta anos, não se conseguiu o ponto de equilíbrio entra a quimera e a plena realização do que está no Texto Constitucional previsto. Até porque, frise-se, há um inegável viés de irrealidade em uma série de previsões constitucionais que mais parecem as fictícias fachadas luxuosas que o Ministro Grigori Potemkim teria mandado construir em 1787 para esconder da Tsarina Catarina II a pobreza de algumas vilas da Criméia, quando de sua visita àquela região. Ou seja, os princípios existem, mas de nada adianta serem letra-morta.
Desmistifique-se que, pontualmente, tampouco a lista de direitos e garantias é uma obra genuinamente brasileira como a jabuticaba ou a tomada de três pinos. Na França, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789 e as Constituições de 1848, de 1875 e a de 1958 já traziam uma lista de garantias individuais extremamente parecida com a que há no nosso artigo 5, por exemplo. A Constituição da República de Weimar, de 1919, idem. Em território americano, a Constituição Mexicana de 1917, em seus artigos 5º, 27 e 123, foi a verdadeiramente pioneira nesta seara. Tratava das garantias individuais, dos direitos à vida e à liberdade individual, das relações de trabalho, igualdade jurídica entre trabalhadores e patrões, trouxe questões sobre a função da propriedade privada e introduziu regras sobre a Reforma Agrária; paradoxalmente, porém, trouxe severas restrições no exercício dos direitos religiosos que serviram de arcabouço jurídico à perseguição levada a efeito à Igreja por Alvaro Obregón e por Plutarco Elías Calles.
Nota-se, então, que o que a mitologia constitucional brasileira considera como ineditismo pátrio, como, por exemplo, a função social da propriedade, já estava na Constituição mexicana de 1917, há mais de cem anos, portanto, e assim como o Brasil 30 anos depois, a sociedade mexicana continua desigual, carente, sujeita aos mesmos problemas graves e com imensa dissintonia entre o que a Lei Maior prevê e o que efetivamente foi realizado. Destarte, não basta haver princípios elevados insculpidos na Constituição. Pô-los à prática é curial.
Radicalmente discordamos das explicações simplistas de que a Constituição de 1988 é muito avançada para seu tempo ou que o Povo Brasileiro para ela não estava (e não está) preparado. Uma constituição deve ser, antes de tudo, uma lista de princípios, um guia de ação, não uma lista de exigências. E o que o brasileiro enxerga quando lê os intricados artigos da constituição não é o que ele tem de fazer, mas o que ele tem a receber. A verdade, portanto, é que nosso texto constitucional é avançado, moderno (mesmo que alguns princípios sejam seculares) e extremamente necessário, mas nos falta, como Nação, elevá-lo à concretização. Falta-nos viver a constituição, em suma.