Por Cristiane Olivieri, Especialista em Direito da Cultura e Entretenimento, da Rede LEXNET.
DESGOVERNO TAMBÉM NA CULTURA
A solicitação de aprovação de uso dos incentivos fiscais federais à cultura para o espetáculo teatral “O Santo Inquérito” de Dias Gomes foi arquivada ainda na fase de admissibilidade. Nesta fase, são analisados tão somente os documentos obrigatórios, o currículo do realizador, e a natureza artística da proposta. A Companhia BR116, proponente do projeto e responsável pela realização da peça, tem 11 anos e realiza projetos com e sem incentivos fiscais desde sua fundação, tendo, portanto, histórico indiscutível. Além disso, todos os documentos apresentados na inscrição da proposta estavam em conformidade com o exigido. Por fim, o espetáculo, montado por diversas vezes desde sua estreia, recebeu diversos prêmios, mas trata da tortura e da opressão religiosa.
O arquivamento do projeto é apenas mais uma das ações da Secretaria Especial de Cultura do Ministério do Turismo no sentido de interferir no mérito dos projetos do setor cultural. O Instituto Vladmir Herzog que vem realizando projetos na área de direitos humanos e memória há mais de dez anos, também teve seu projeto indeferido recentemente.
Para além das questões de mérito e pauta moral, a Secretaria vem, recorrentemente, não realizando suas funções administrativas e de atendimento da sociedade civil: represando projetos; não incluindo projetos avaliados nas reuniões da Comissão de Cultura; não publicando aprovações, homologações e análises de alterações de Projetos; ou mesmo, não transferindo os recursos captados pelo Projeto para a conta que possibilita a movimentação e utilização de tais recursos. Os gestores públicos têm descumprido os prazos administrativos e desdenhado de ações judiciais, quando propostas.
Não bastassem todos os desafios trazidos pela pandemia a todos nós, e em especial aos profissionais da cadeia econômica da cultura, a Secretaria, que deveria estar concentrando suas energias em apoiar o maior número de projetos e profissionais, vêm atuando para dificultar a execução dos projetos que já captaram recursos, e os que poderiam captar agora no primeiro trimestre de 2021.
Cada real colocado em projetos incentivados gera pelo menos R$ 1,59 para economia só considerando as atividades diretas, mas pode chegar a 15 vezes mais, se incluirmos o impacto que este recurso pode causar na região. Só os resultados econômicos das atividades artísticas deveriam ser motivo suficiente para que a tramitação dos projetos fosse agilizada no sentido de auxiliar à sobrevivência dos profissionais que vivem da produção cultural e às instituições que precisam viabilizar sua manutenção.
Para além das questões financeiras, as atividades artísticas geram acolhimento para aqueles que ficam em casa, possibilitando o acesso e fruição dos espetáculos online durante o isolamento, e poderão ser a ponte de compreensão e reconstrução das humanidades e do convívio coletivo, quando o momento da pandemia passar. Mas, os responsáveis pela política cultural não compreendem que não se trata de um único artista, mas sim de uma cadeia econômica e da fruição pela sociedade. O desgoverno não está só na saúde, ele nos cerca por todos os lados.