Acesso ao associado Login: Senha:
PT | PT | PT | PT

A TEORIA DA CAUSA E A FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO

Por: Flávio Vidigal.

A causa é um dos institutos do direito privado mais difíceis de se delinear e, mais ainda, de se conceituar. No Direito Romano, o instituto da causa assumiu diversas acepções, tais como “causa do contrato”, “causa da obrigação”, “causa final”, “causa motivo” etc. As diversas interpretações do instituto feitas pelos glosadores e juristas medievais resultaram na transmissão aos juristas contemporâneos de toda a indeterminação do seu conceito o qual, apesar de extremamente divergente, se faz presente em diversos ordenamentos jurídicos europeus e latino-americanos.
Na Itália, a causa foi adotada como requisito de validade do contrato, não obstante a fluidez do seu conceito e até mesmo a dúvida reinante na doutrina sobre a necessidade da sua verificação para a validade do negócio jurídico serem, ainda hoje, matéria de enorme controvérsia.
De acordo com o Código Civil italiano de 1942 e com parte da doutrina italiana, liderada por Emilio Betti, a causa do contrato significa a função econômico-social que deve assumir todo contrato, sob pena de invalidade.
A despeito da enorme crítica à teoria da causa como sendo a função econômico-social do contrato, o novo Código Civil brasileiro, em seu artigo 421, estipula que a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.
A redação conferida ao texto legal tem dado ensejo a discussões pertinentes à posição adotada pelo Código de 2002, fazendo nascer a indagação se o legislador brasileiro (até então anti-causalista sob qualquer aspecto e sentido) teria adotado a causa como requisito de validade do contrato, ainda que implicitamente, uma vez que o artigo 104 do Código Civil brasileiro não a prevê expressamente.
Adverte Cataudella que a norma contida no artigo 421 pode assumir um valor maior ou menor de acordo com o modo em que é compreendida e aplicada. A exemplo da possibilidade de interpretações diversas sobre um mesmo dispositivo, principalmente em se tratando de cláusula geral, o mencionado jurista cita o artigo 1.322 do Código Civil italiano, o qual prevê o controle de merecimento de tutela dos contratos com base em sua tipicidade, sendo facultada a conclusão de contratos atípicos desde que dirigidos à realização de interesses merecedores de tutela de acordo com o ordenamento jurídico. Alguns autores, ao interpretarem o dispositivo, defenderam a idéia de que não mereciam tutela as manifestações fúteis ou improdutivas da autonomia da vontade.
Como já sabido, a teoria causalista não foi adotada por Clóvis Bevilaqua no Código Civil de 1916, o qual se limitou a cuidar da ilicitude do objeto como requisito essencial de todo ato jurídico na configuração de sua validade.
Por outro lado, é preciso indagar se a cláusula geral da função social do contrato, expressa no artigo 421 do novo Código Civil, guarda relação com a doutrina da causa do contrato, sobretudo pela inclusão, no dispositivo, do conteúdo principiológico contido na expressão em razão da função social do contrato. Desse modo, as questões da causa e da função social do contrato, ignoradas pelo Código Civil de 1916, tornam-se relevantes no Código de 2002, a ponto de autorizarem a pesquisa a respeito da identidade dos dois conceitos.
A propósito, Gogliano sustenta a real e efetiva identidade entre causa e função social no âmbito contratual, assinalando que o Código Civil brasileiro adotou de forma expressa a teoria causalista “ao considerar a função social como finalidade da liberdade de contratar.”
Nesse contexto, ao dizer que a liberdade de contratar será exercida em razão da função social do contrato, o legislador parece ter adotado, ainda que inconscientemente, a teoria causalista, seja no sentido de elemento essencial à validade do contrato, seja a título de cláusula geral como diretriz traçada para conclusão do negócio, uma vez que a função social, em tal sentido, dá à causa estatuto de essencialidade, condicionando-a à satisfação também do interesse público. A partir do momento em que a lei estipula que a função social é fundamento e razão de validade de qualquer acordo que regule interesses privados, fruto da autonomia privada, poder-se-ia concluir que o legislador brasileiro adotou implicitamente a teoria causalista, ao considerar a função social como causa do contrato, nos moldes da doutrina Bettiana. Entretanto, a função social dever ser entendida somente como um limite ao exercício da autonomia privada.
Certo é que, se a leitura da norma contida no artigo 421 induzisse à conclusão de que o contrato deve satisfazer interesses públicos, ter-se-ia de atribuir-lhe finalidades que não lhe deveriam ser próprias, ao menos enquanto instrumento da autonomia privada, ou seja, da liberdade dos indivíduos de ditarem as regras de acordo com seus interesses próprios. A função social deve ser sim um limite ao exercício da autonomia privada; jamais o fundamento para a validade do contrato.
No âmbito do Código Civil italiano de 1942 a causa foi definida como sendo a função econômico-social do contrato. Com efeito, ao construir o discurso de que a causa do contrato se baseia no termo função, acaba-se por determinar uma mudança radical da perspectiva e do papel atribuído à causa na teoria dos atos de autonomia privada; a causa não mais estaria a serviço do interesse perseguido pelo indivíduo, mas funcionaria como técnica de controle da compatibilidade dos interesses individuais com a finalidade perseguida pelo ordenamento jurídico. Essa interpretação é claramente visível na Relazione al Codice Civile e na doutrina de Emilio Betti.
Segundo o Prof. Scognamiglio , uma pretensa reconstrução da causa como função econômico-social típica do contrato levaria a cabo a utilização do elemento causal como instrumento de controle do ato da autonomia privada e das finalidades por ela perseguidas, assinalando uma nítida censura em relação ao âmbito tradicional de operabilidade do conceito de causa do contrato, ao qual se atribuía o dever de assegurar a subsistência da justificativa das transferências patrimoniais de uma esfera jurídica a outra .
Nesse sentido, alguns juristas temem que o artigo 421 do Código Civil brasileiro possa afastar o princípio da autonomia da vontade e da liberdade contratual, ensejando uma excessiva intervenção estatal nos contratos e ameaçando a segurança jurídica das relações privadas.
Realmente, a interpretação literal da norma contida no citado artigo 421 pode conduzir à conclusão de que, para que o contrato seja válido, há de atender a alguma finalidade social, uma vez que a liberdade de contratar será exercida em razão da sua função social.
Nesse sentido, afirma Moraes que:

“quando a lei diz que ‘a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato’, a expressão ‘em razão’ serve a opor justamente autonomia privada à utilidade social. Assim, a liberdade de contratar não se dará, pois, em razão da vontade privada, como ocorria anteriormente, mas em razão da função social que o negócio está destinado a cumprir.”

Entretanto, essa não seria a interpretação mais adequada ao dispositivo em comento.
É preciso estabelecer

“‘uma conexão entre o sistema jurídico e seu ambiente social, e também subjetivamente, através da imagem que os juristas fazem dos seus contextos sociais’. Assim, ficaria claro que os teóricos do Direito não somente interpretam as distintas proposições normativas a partir do contexto que essas proposições se encontram no corpus do Direito considerado em conjunto, mas também desde o horizonte de uma pré-compreensão da sociedade contemporânea, a qual resulta retora em todo o seu trabalho de interpretação.”

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 institui o Estado Democrático de Direito e é com base nesse paradigma que o artigo 421 do Código Civil brasileiro de 2002 deve ser interpretado. Com efeito, ensina Miguel Reale que

“Na elaboração do ordenamento jurídico das relações privadas, o legislador se encontra perante três opções possíveis: ou dá maior relevância aos interesses individuais, como ocorria no Código Civil de 1916; ou dá preferência aos valores coletivos, promovendo a ‘socialização dos contratos’; ou, então, assume uma posição intermédia, combinando o individual com o social de maneira complementar, segundo regras ou cláusulas abertas propícias a soluções eqüitativas e concretas. Não há dúvida que foi essa terceira opção a preferida pelo legislador do Código Civil de 2002.”

Na Europa o problema da causa vem perdendo terreno. Tanto os princípios dos contratos comerciais internacionais elaborados pelo UNIDROIT, como os Principles of European Contract Laws preparados pela Comissão Lando, elecam os requisitos constitutivos do contrato, prescindindo totalmente do perfil da causa, visto terem chegado à conclusão de que nas relações comerciais o requisito da causa reveste mínima importância prática uma vez que nesse âmbito as obrigações são assumidas por ambas as partes.
Nas codificações latino-americanas, sobretudo nas mais recentes, verifica-se a dispensa em larga medida – se não integral – da própria utilização do conceito de causa.
Diante disso, seria um retrocesso interpretar o artigo 421 do Código Civil brasileiro de 2002 levando em consideração os ideais de um Estado Social, admitindo a adoção do sistema causalista pelo legislador brasileiro.
Na jornada de Direito Civil realizada em Brasília, de 11 a 13/09/2002 chegou-se à conclusão de que “A função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, não elimina o princípio da autonomia contratual, mas atenua ou reduz o alcance desse princípio, quando presentes interesses metaindividuais ou interesse individual relativo à dignidade da pessoa humana”.
Diante disso, a interpretação literal do artigo 421 do novo diploma civil levaria à errônea conclusão da adoção, pelo legislador brasileiro, da teoria causalista, nos moldes propostos por Betti, ou seja, a causa como a função social do contrato.

Nas palavras de Wald, o

“contrato não deixou de exercer a sua função econômica, constituindo um reflexo patrimonial da liberdade individual constitucionalmente garantida. Apenas acrescentou-se-lhe a função social, de modo a evitar que houvesse uma atividade contrária ao interesse da sociedade, que passou, assim, a constituir um verdadeiro abuso de direito ou um desvio de poder, já condenados de modo implícito na legislação anterior.”

Contrato é acordo de vontades que visa regular interesses particulares, desde que na conformidade do ordenamento jurídico. Tal acordo de vontades não pode ser considerado inválido, ainda que socialmente inútil. A liberdade contratual não é exercida em razão da função social do contrato, não sendo essa o seu fundamento, mas sim o direito à liberdade, garantido constitucionalmente, o qual se manifesta pela autonomia privada. A expressão em razão foi inserida no artigo 421 do novo Código Civil no intuito único de reforçar a idéia de limitação da liberdade contratual e jamais objetivou condicionar a existência da liberdade contratual à verificação de uma função social.